segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

O Fim da Reserva de Mercado

Paulo Werneck


Barão de Forrester: Mapa do Alto-Douro, 1853
Fonte: Wikipedia

Qual a consequência econômica da reserva de mercado para os tecidos portugueses estabelecida pelo Conde da Ericeira?

Uma resposta parcial podemos encontrar na Memória de Francisco Fonsecca, que obteve um accessit da Academia Real das Sciencias de Lisboa e foi por ela publicado em suas Memórias Econômicas no ano de 1791.

Diz Fonsecca:
CAPITULO I. Em que se refere o estado actual da Agricultura, e Commercio do Alto-Douro, desde o anno de 1681 até o anno de 1756.

No anno de 1681 não tinha o Alto-Douro huma taõ larga plantaçaõ de vinhas: o gosto da Inglaterra inclinado neste tempo a vinhos doces, fazia que os lavradores, além das vinhas sufficientes para o consummo interno, só plantassem vinhas em situações escolhidas em as costas das ribeiras mais expostas á força do Sol: isto comprehendia pequenas porções de terra destacadas por entre os mattos. Naõ havia as grandes quintas que hoje se vem; os lagares de 3, 4, até 5 pipas ao muito, que naquelle tempo havia, e os tuneis das mesmas medidas mostraõ as pequenas porções, em que consistia a colheita de cada lavrador. O resto das terras pela maior parte estava inculto, e de annos em annos se lhe cortava o matto, e se queimava sobre a terra para nella se semear centeio, com bem pouco lucro dos lavradores que faziaõ estas sementeiras. Outras terras se traziaõ semeadas de sumagre, que se cultivava com cuidado; e este era hum ramo de commercio, de que os lavradores tiravaõ utilidade. Os olivaes occupavaõ outra parte da terra, porém como nem toda he propria para esta plantaçaõ, se viaõ muitos lavradores obrigados a esperar oito, e dez annos por huma colheita regular de azeite, passando-se outros tantos successivamente, em que naõ o tornava a haver, como ainda hoje mesmo se observa em alguns olivaes antigos, que estaõ plantados em as terras de ribeira seccas, e menos fortes; e como destas he que se compõe o Territorio, muitos lavradores se foraõ pouco a pouco desanimando, até o ponto de deixarem ir a monte os seus olivaes. Nas terras altas se produziaõ castanheiros, e em outras havia pouco maior cultura de paõ, do que aquella que ainda hoje se conserva. E deste modo era este Territorio nos tempos antecedentes hum dos mais pobres do Reino, o que se prova da pobreza, com que antigamente se edificava em todo elle, nao se vendo hoje nem ainda vestigios de hum só edificio antigo magnifico, e sumptuoso; porque supposto se encontrem agora nelle a cada passo excellentes casas com magnificencia, e muito bons Templos, tudo isto he de fábrica moderna, e tem sido edificado ha poucos tempos, achando-se difficultosissimamente hum destes edificios que possa contar cem annos.

Este era o estado do Alto-Douro no anno de 1681, em que, por industria, e direcçaõ do immortal Conde da Ericeira, se estabelecêraõ em Portalegre, e na Covilhã fábricas de pannos, e baetas, e fizeraõ taõ rápidos progressos, que bastando os nossos pannos para o consummo do Reino, e Conquistas, como o confessaõ os mesmos papéis publicos de Inglaterra, se prohibio nos annos de 1684, e 1685 a entrada dos pannos farges, e droguetes-panno estrangeiros, coarctando-se com isto de tal modo o commercio activo de Inglaterra sobre Portugal, que as fazendas da exportaçaõ daquelle Reino para este chegáraõ a naõ montar mais de 400$000 L. sterling por anno.

Estas fábricas de todo se arruináraõ com o tratádo do Commercio celebrado entre as duas Côrtes de Portugal, e Inglaterra no anno de 1703, em que se deo aos Inglezes franca liberdade da importaçaõ dos seus lanificios, com a condiçaõ de que os vinhos de Portugal pagariaõ a Inglaterra menos huma terça parte dos direitos de entrada, que pagassem os vinhos de França.

Naõ se tirou deste tratado para Portugal o effeito desejado, todo o proveito foi para Inglaterra; porque sendo a sua exportaçaõ para Portugal antecedentemente de 400$000 L sterling em fazendas, logo successivamente ao tratado montava a 1:300$000 L sterling por anno, segundo os registos das suas mesmas Alfandegas.

Naõ aconteceo o mesmo aos vinhos de Portugal com a diminuiçaõ dos direitos, porque sendo a exportaçaõ para Inglaterra nos quatro annos antecedentes ao tratado de 31$324 pipas, e nos quatro annos seguintes ao tratado de 32$022, segundo consta dos mesmos registos, se augmentou sómente a extracçaõ depois do tratado em quatro annos 698 pipas, o que na verdade corresponde muito pouco ao grande augmento da importaçaõ das fazendas de Inglaterra.

Esta falta da extracçaõ dos vinhos conteve a plantaçaõ das vinhas do Alto-Douro; porque merecendo a preferencia os vinhos mais doces, e excedendo os vinhos de Lisboa em doçura aos do Douro, daquelles he que se fazia maior extracçaõ, supposto que os do Douro tivessem reputaçaõ maior pela sua força, que os fazia conservar por mais tempo: isto fez que os vinhos do Douro pouco a pouco fossem adquirindo maior estimaçaõ em os paizes do Norte. Como a quantidade da producçaõ era pouca, augmentáraõ-se os preços, e os Commissários Inglezes chegáraõ a dar 60$000 réis, e mais por cada pipa, o que fizeraõ industriosamente para melhor hirem aos dous fins de estabelecer inteiramente a ruina das fábricas do Reino pela introducçaõ das suas fazendas nas tres Provincias da Beira, Minho, e Tras os Montes, e do barateio dos vinhos pelo augmento da plantaçaõ, que animáraõ com os grandes preços. Com effeito ambos os fins conseguíraõ; as fábricas inteiramente se perdêraõ em pouco tempo, sendo excessiva a introducçaõ das fazendas de Inglaterra pela barra do Porto; e a plantaçaõ de vinhas no Alto-Douro cresceo com tanto excesso, que poucos annos se sustentou o preço dos vinhos, diminuindo tanto, que os Commissarios Inglezes chegáraõ a comprar pelos annos de 1750 até o de 1755 vinhos dos mais finos do Douro a 10$000 réis, e menos cada pipa, chegando a tal estado o barateio, que os mesmos negociantes da Feitoria Ingleza, receosos de que huma tal decadencia fosse ruinosa ao feu proprio commercio, se juntáraõ na casa da mesma Feitoria do Porto para se ajustarem entre si a augmentar os preços ao vinho, por conhecerem que aquelle nem bastava para a despeza da cultura.

Este projecto naõ se effeituou pelas contradicções de Diogo Stuart, negociante Inglez, muito astuto, e caviloso, que soube com artificiosas persuasões fazer mudar de parecer a toda a Feitoria Ingleza, fazendo antes voltar todos os seus cuidados para arruinar o negocio de D. Bartholomeu Pancorvo, negociante Hespanhol, que havia pouco tempo tinha apparecido no Porto, e publicado hum vasto projecto de commercio de vinhos do Alto-Douro para os portos do Baltico.

Este Commerciante, rico de idéas, e pobre de cabedaes, entrou em grandes compras de vinhos, dando, ou offerecendo por elles maiores preços: os lavradores, cançados da escravidaõ Britanica em que viviaõ, lhe confiavaõ francamente as suas novidades. O principal projecto do dito Pancorvo era abrir novos caminhos para a extracçaõ deste genero, fazendo-o navegar para os portos das nações do Norte, conhecendo que este era o meio mais proprio para excitar a emulaçaõ Britanica, e para felicitar a lavoura, e commercio activo do Reino.

Para executar este projecto nao bastavaõ seus poucos cabedaes; e no tempo em que procurava associar alguns commerciantes Portuguezes, e lavradores do Alto-Douro para esta importante empreza, falio, por naõ poder suster já o empate dos muitos vinhos, que para este fim tinha comprado, sobrevivendo pouco á ruina que lhe motivou a astucia Britanica, e desconfiança Portugueza.

Sobre a ruina deste commerciante, e sobre os seus projectos se formou a Companhia Geral da Agricultura das vinhas do Alto-Douro, que, a pezar dos seus muitos defeitos, foi a redempçaõ daquelle Territorio, e hum freio á illimitada cubiça dos commerciantes Inglezes, que até chegou a arruinar a pureza, o credito, e a grande reputacaõ que tinhaõ tido em o Norte os vinhos do Alto-Douro, misturando-lhes vinhos verdes, fracos, sem côr, e de menos bondade do Vale de Besteiros, S. Miguel de Outeiro, Anadia, e outros sitios, querendo supprir esta falta de bondade natural com bagas de sabugueiro, pimenta, assucar, e outras misturas, e confeições, que, em lugar de os melhorar, os fazia chegar ao Norte sem gosto, sem força, sem côr, e sem bondade alguma; de sorte, que tendo alli tido preferencia a todos os mais vinhos pela sua força, côr, delicadeza, e sabôr, chegava a preferir-se-lhe naõ só qualquer vinho, mas até qualquer outra bebida.

Eis aqui o estado, em que se achava no anno de 1756 a Agricultura, e o Commercio do Alto-Douro: o grande abatimento em que se achavaõ os preços dos vinhos, fazia que as vinhas naõ pudessem cultivar-se bem, por falta de dinheiros; e isto tinha reduzido a producçaõ da maior parte das vinhas a taõ pouca quantidade, que cada vez mais se impossibilitava a cultura, e ainda esta mesma diminuta producçaõ se naõ extrahia pela má reputaçaõ, que tinha concebido em o Norte com as misturas de máos vinhos de outras terras.
Quanto ao vocabulário, destaco apenas as palavras pão e novidades. Pão se refere, deduzo, às plantas que produzem os cereais com que se fabrica o pão propriamente dito. Por novidades devemos entender os frutos da terra, no caso em questão, os vinhos.

O tratado a que Fonsecca se refere é o Tratado de Methuen, que abriu os portos de Portugal aos tecidos ingleses em troca do benefício tarifário inglês à entrada de vinhos portugueses, o qual foi publicado em Tratado de Methuen  sem fazer comentários. Comento agora.

Os tratados em si não são bons nem maus, dependem dos objetivos de cada contratante e da força política e militar de cada um. Em princípio deveriam ser bons para ambas as partes, no máximo prejudicando o resto do mundo, por não auferir as vantagens mutuamente concedidas aos signatários.

O Tratado de Methuen, à primeira vista, é neutro. A Inglaterra ofereceu vantagens comerciais a Portugal e este, em troca, ofereceu vantagens comerciais à Inglaterra. Nada mais justo.

Ocorre que a vantagem que a Inglaterra ofereceu foi às custas das demais nações: em vez de comprar vinhos franceses, ou de outras nações, uma pequena renúncia tributária permitiria que Portugal aumentasse suas vendas.

Já Portugal ofereceu a abertura de sua reserva de mercado: os tecidos ingleses não tomariam o lugar de outros tecidos estrangeiros também importados, mas dos próprios tecidos portugueses. Portugal não ofereceu nenhuma renúncia tributária: ofereceu a ocupação, a fonte de renda de sua própria população.

Mais ou menos como a blague da união da galinha com o porco para servirem bacon with eggs...

As consequências estão bem ilustradas pelo texto de Fonsecca.

Esse tratado foi assinado porque tendo falecido o Conde da Ericeira (que se matou vítima de depressão), este foi substituído por outros que estavam buscando incrementar a produção de vinhos, sem atentar, ou sem se importar, com o destino da indústria de panos. Nada demais: vemos isso ocorrendo hoje em nosso país.

Fontes:


FONSECCA, Francisco Pereira Rebello da. Memoria Sobre o Estado da Agricultura, e Commercio do Alto-Douro. In Memorias Economicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa, Para o Adiantamento da Agricultura, das Artes, e da Industria em Portugal, e Suas Conquistas. Tomo III. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1791.