domingo, 29 de janeiro de 2017

Ainda a Reserva de Mercado

Paulo Werneck


Liteira
Fonte: Museu Nacional dos Coches, PT

A tentativa de reserva de mercado para a produção de panos em Portugal, intentada pelo Conde da Ericeira provou ser uma tarefa difícil. Começou com a Pragmática de 1677 (ver Uma Reserva de Mercado "Recatada"), continuou com um alvará em 1688 (ver Fechando Brechas na Reserva de Mercado) e digamos que culminou nesta pragmática de 1698, extremamente detalhada.

De dez em dez anos uma nova lei para reforçar as anteriores, considerando as que consegui localizar, mas o prólogo da pragmática faz supor a existência de numerosas outras, a indicar uma certa insegurança jurídica, que a nós não é estranha, principalmente na área tributária, onde somente as instruções normativas da Receita Federal ultrapassam o milhar.

Eis então a Pragmática de 14 de Novembro de 1698, que consolida numa norma única a legislação sobre o tema:

DOM PEDRO, por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, etc. Faço saber aos que esta Lei Pragmatica virem, que, havendo passado varias outras Pragmaticas, e outros Alvarás e Ordens, depois que tenho o governo destes Reinos, sobre o modo de vestir de meus Vassalos, como tambem sobre as Cousas, de que nos vestidos, adornos das casas, coches, liteiras, ou seges, poderiam usar, se achava hoje o Regedor da Casa da Supplicação, e os mais Ministros, a quem a execução dellas, confusos, pela variedade e multidão, e assim não se podia determinar com certeza quaes eram os transgressores; e por este modo vinham a estar aquellas disposições sem observancia, sendo ordenadas para bem do Reino em commum, e dos Vassallos em particular, por se lhes evitar a desordem do luxo e da vaidade, com que miseravelmente se empobrecem, faltando por esta causa a outras obrigações mais precisas de suas casas e familias; e além disto se passavam os cabedaes do Reino, aos estranhos pelas compras e vendas de mercadorias desnecessarias e inuteis. E mandando ver e considerar esta materia pelos do meu Conselho, e Outros Ministros de toda a supposição, com cujo parecer me conformei, os quaes viram e examinaram as antecedentes Pragmaticas, e mais Leis e declarações sobre a mesma materia - houve por bem mandar passar esta nova, na qual especialmente declarasse tudo o que das outras se devia observar, e o mais que presentemente fosse conveniente, para esta sómente tenha sua devida observancia.
I. Primeiramente - declaro que fica em seu vigor a disposição da Lei de 4 de Novembro de 1669, para que nenhuma pessoa possa andar nestes meus Reinos em besta muar de sella, nem usar della em sege, exceptuando as pessoas dos Desembargadores, assim actuaes de meus Tribunaes, como os que fóra delles trazem a insignia de Beca, e as dos Medicos e Cirurgiões; não passando este privilegio a outras algumas pessoas, ainda que sejam seus filhos, parentes, ou criados; nem áquelles, que pelas Ordenações ou Alvarás tem privilegio de Desembargador, ainda que por elles expressamente lhes seja permittido andar em besta muar, sob pena de ser tomada a besta a qualquer pessoa, que fôr achada, ou se lhe provar que andou nella, ou trouxe na sege; a qual será vendida, e metade do preço será applicado para a Redempção dos Captivos, e a outra metade se repartirá igualmente entre o denunciante, Ministro, ou Official, que a tomar, e as despesas da Relação; mas nesta prohibição não se comprehendem as bestas muares, que se costumam alquilar para as jornadas.

II. Não se usará de seges descobertas, nem poderá andar pessoa alguma nellas nesta Cidade, nem em outra alguma Cidade, ou Villa, neste Reino; e sómente ficarào permittidas, quando algumas pessoas forem de caminho, com tanto que nem ainda nesse caso começarão a jornada, entrando nellas em povoado; mas quando forem pelas estradas, poderão continuar o caminho, ainda que seja entrando e sahindo nas Cidades e Villas delle, mas não para andarem nellas. E nesta Cidade se intende o povoado até aquellas paragens, em que se podiam metter seis mulas nos coches; as quaes, sem embargo do que na Pragmatica do anno de 1677 se ordenou, mando que sejam S. José, os Anjos, o Postigo de Nossa Senhora da Graça, a Esperança, e Santa Clara. E nos que forem comprehendidos em usarem de seges descobertas, se executará a pena do perdimento dellas, e das bestas que as levarem, applicada na mesma fórma acima referida. E quanto aos coches, serão perdidas as duas mulas, ou facas, ou quaesquer outras bestas, de que se compozerem os tiros de seis, os quaes hei por prohibidos para deles não se usar, senão dos ditos limites para fóra, debaixo da dita pena de perdimento.

III. Hei por prohibidos todos os vestidos compridos, como já estavam na Pragmatica do anno de 1677, exceptuando as pessoas dos Desembargadores, que vestem com Beca, e os Estudantes matriculados nas Universidades de Coimbra, ou Evora, com tanto que não tragam caudas.

IV. Mando, que se guarde a ordem, que se linha dado na Pragmatica do anno de 1677, e na outra de 1686, sobre o modo dos lutos e funeraes, e vem a ser: que nenhuma pessoa se possa vestir de luto comprido, mas poderá trazer capa comprida com golilha, ou balona, mas de nenhum modo se usará de capuz, ou capa de capello: como nem tambem se poderão forrar os coches, liteiras, ou seges, de nenhum modo, de luto exterior, ou interior. E quanto aos funeraes, hei por bem, que nas casas dos defuntos, de qualquer qualidade, titulo e estado, ou dignidade, por maior que seja, e nas Igrejas, em que se enterrarem, ou fizerem officios, não se use de adorno, ou armação funebre, mais que uma tarima de um degráo, coberta de negro, sem passamane, galão, ou renda de ouro, fina, ou falsa, sobre a qual se ponha o ataude, ou corpo do defuncto, com quatro tocheiras nos cantos, e dous castiçaes á Cruz, sem outro ornato, ou armação.

V. E por quanto a variedade das modas, de que usam os que fazem, ou mandam fazer vestidos, é a mais damnosa para a Republica - hei por bem mandar por nesta Pragmatica a estampa da fórma, em que todos se devem vestir, pela qual se hão-de regular os vestidos, que daqui por diante se fizerem, de sorte que, sem variedade alguma se ajustem os Officiaes ao debuxo e demonstração da dita estampa, no córte das mangas, nas algibeiras, nos botões e nas casas; e em tudo o que nella se achar: e que todos os Officiaes de Alfaiate, que se acham examinados, e os que ao diante o forem, não poderão usar de seus Officios, sem terem a Pragmatica com a estampa em suas tendas, sob pena de incorrerem nas penas, em que incorrem os Officiaes, que fazem vestidos contra esta Pragmatica.

VI. Hei por prohibidos absolutamente todos os generos de télas, ou quaesquer outras sedas tecidas com ouro ou prata, exceptuando os lós da India Oriental, como tambem aquellas télas, ou sedas, que constar serem para o Culto Divino, e que nelle com effeito se empregarem.

VII. Ficam tambem prohibidas todas as fitas tecidas ou bordadas com ouro, ou prata, e outrosim todo o genero de bordados de ouro, ou de prata, dos quaes nenhuma pessoa poderá usar em vestidos, nem adornos de casa; e tambem da mesma sorte todos os bordados de seda, ou de qualquer outra materia; e bem assim todas as guarnições de ouro, prata, rendas, fitas, ou outra alguma cousa; e sómente nos guardapés das mulheres se poderá pôr uma barra de seda de altura de um palmo e um paranvaz com debrum.

VIII. Outrosim nos vestidos dos homens fica prohibido todo o genero de fitas, excepto somente as que forem necessarias para atar nas pernas dos calções, que forem abotoados, chapéo, ou gravata. Tambem hei por prohibidos todos os cortados e picados, de qualquer modo que sejam.

IX. Hei por bem que ninguem use de caireis de ouro, ou prata, nos chapéos, como nem tambem se poderá usar de cairel negro nos chapéos pardos, nem de cairel de côr nos chapéos negros; e assim tambem não poderão trazer fitas, ou cordões nos espadins.

X. Não se poderá usar de botões alguns de ouro, ou prata, nem botões dourados, nem de fio, ou filagrana; e sómente ficam permittidos os de prata lisa, feitos ao martello, sem outro algum lavor.

XI. Não se poderá trazer nas vestias mais, que uma algibeira atravessada; as mangas dellas não tenham canhões, nem dobrem por cima das mangas das casacas. E quem quizer usar de mangas justas nas casacas, o poderá fazer; mas tambem nellas não poderá trazer canhões: como bem assim as mangas de bota se hão de trazer sem dobras, conformando-se com a estampa. E porque nas algibeiras, que vão postas na estampa, não se póde dar regra certa, pela diversidade das estaturas dos corpos, para a distancia em que ha de ficar do extremo da casaca, se porão proporcionadamente, segundo a estatura de cada pessoa, na parte em que está posta a estampa.

XII. Não se poderão dar librés aos lacaios com forros, gibões, meias, ou mangas de seda; o que se intenderá tambem nos boccaes das mangas das casacas.

XIII. Hei por prohibidos todos os pannos de côr, fabricados fóra do Reino; e da mesma sorte os droguetes-pannos de côr; e sómente se permittem os pannos de grãa, que vierem de fóra do Reino, para se navegarem para a India, mas não para se usar delles no Reino.

XIV. Ficam permittidos os vestidos daquellas pessoas, que costumam andar com golilhas, e calções abotoados; porque este modo de vestir não se comprehende nesta Pragmatica; e poderão trazer os calções, ou enrolados, ou abotoados: como tambem se não intende com a gente do campo e trabalho, que veste conforme a seu exercicicio e possibilidade, com tanto que nem uns nem outros usem de generos prohibidos.

XV. Esta Pragmatica hei por bem que se observe inviolavelmente; pela qual hei por derogadas todas as antecedentes, assim quanto aos generos prohibidos, como quanto aos vestidos; e só ella hei por meu serviço e bem de meus Vassallos, que se guarde. - E todo o Alfaiate, que contra a fórma da estampa fizer algum vestido, no qual, ou em parte delle, se exceda a dita fórma, ou o fizer de genero prohibido, será preso, e pagará quarenta mil réis, e irá degradado tres annos para Mazagão. - E toda a pessoa que fôr achada com vestido, em todo ou em parte, contra esta Pragmatica, assim pelo feitio, como genero, sendo peão, estará tres mezes preso, e da cadêa pagará vinte mil réis, e perderá o vestido; e sendo Fidalgo, ou pessoa nobre, terá os mesmos tres mezes de prisão, e perderá o vestido, e pagará quarenta mil réis; e sendo Titular, ou Fidalgo de grande Solar, terá a prisão em uma Torre.- E todos, como tambem os Alfaiates, pela segunda vez, terão as referidas penas em dobro. E o meu Porteiro-mór, ou quem seu cargo servir, não admittirá á minha presença, em audiencia geral, ou particular, alguma pessoa, de qualquer estado e condição que seja, que em sua pessoa, ou na de seus familiares, traga cousa, que, pelo genero, ou pelo feitio, seja contra esta Pragmatica. - E as pessoas, que venderem os generos prohibidos, terão as mesmas penas, que os Alfaiates, e perderão os taes generos todos, que lhes forem achados, e o preço dos que tiverem vendido.- Todas as pessoas, que forem achadas com vestidos contra esta Pragmatica, em todo, ou em parte, assim pelo feitio, como pelo genero, serão obrigados a declarar o Alfaiate que lh'o fez, e o mercador que lh'o vendeu - e não o declarando, se fôr peão, pagará mais quarenta mil réis, e terá seis mezes de prisao em cadêa; e sendo Fidalgo, ou nobre, pagará oitenta mil réis, e terá seis mezes de prisão; e sendo Titular, ou Fidalgo de grande Solar, pagará mil cruzados, e será desterrado por um anno para as Cidades de Bragança, ou Miranda; e se fôr filho-familias, que não tenha cabedal para pagar a pena de dinheiro, terá um anno de prisão em uma Torre debaixo de chave.

XVI. E todas estas penas de dinheiro, procedido dos vestidos e generos prohibidos, será uma parte para o denunciante, ou Official, que fizer a tomadia, outra para Captivos, e a outra para as despesas da Relação. E assim estas penas de dinheiro, como a dos perdimentos, serão irremissiveis; e para execução dellas, para com as pessoas de maior qualidade, bastará que os Ministros, ou Officiaes de Justiça, dêem conta ao Regedor, para que, examinada a verdade do facto, me faca presente o que achar, e se proceda a execução das penas, sem fórma de processo judicial, ou sentença. E para melhor execução desta Pragmatica, se poderão tomar as denunciações em segredo, sem nome dos denunciantes.

XVII. E para o consumo dos vestidos, que se acham feitos contra a fórma dela, concedo o tempo de quatro mezes, depois dos quaes começará a ter sua execução.

E para que melhor se possa observar esta Pragmatica, ordeno que o Regedor da Casa da Supplicação, e o Governador da Casa do Porto sejam executores della, aos quaes a hei por mui recommendada, confiando da auctoridade de suas pessoas e do logar que occupam, que a façam observar pontualmente. - E outrosim ordeno a todos os Desembargadores das ditas Casas, e a todos os Corregedores, Ouvidores, Provedores, Juizes, Justiças, Oficiaes e pessoas destes meus Reinos, que a cumpram e guardem, e façam inteiramente cumprir e guardar, como nella se contém: e nas residencias, que se lhes tomarem, se perguntará se cumpriram e fizeram cumprir tudo o que nesta Pragmatica se contém; e não o fazendo, se lhes dará em culpa, para não serem admittidos a meu serviço até minha mercê - e se accrescentará este Capitulo ao Regimento das residencias. E assim mando ao Doutor João de Roxas e Azevedo, do meu Conselho, e Chanceller-mór destes meus Reinos e Senhorios, a faça publicar na Chancellaria, para que a todos seja notoria; e enviar logo Cartas com o traslado della, sob meu sêllo e seu Signal, a todos os Corregedores, Ouvidores das Commarcas destes meus Reinos, e aos Ouvidores dos Donatarios, em cujas Terras os Corregedores não entram por Correição: a qual se registará nos Livros da Mesa do Desembargo do paço, e nos das Casas da Supplicação e Relação do Parto, aonde semelhantes Leis se costumam registar; e esta propria se lançará na Torre do Tombo. José de Oliveira a fez, em Lisboa, a 14 de Novembro de 1698. - REI. Liv. VII de Leis de Torre do Tombo, fol. 29 v.

Na próxima postagem veremos o desfecho da novela, posso adiantar triste.

Texto da norma digitalizado com auxílio de Ocr.space.

Fontes:

PORTUGAL. Lei de 14 de Novembro de 1698. Pragmática dos vestidos e trajos, com declaração e alteração da de 25 de janeiro de 1677. in SILVA, José Justino de Andrada e Silva. Collecção Chronológica da Legislação Portugueza Compilada e Annotada. 1683-1700. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859.