sábado, 4 de maio de 2013

Ordenação de 1520 - O Retorno do Investimento

Paulo Werneck

Nas Ordenações da India do Senhor Rei D. Manoel, passada em 8 de setembro de 1520, podemos observar diversas questões, algumas ainda muito atuais.

Pelo tamanho dessas ordenações, será publicada em uma série de artigos, e, para facilitar as referências, os parágrafos foram numerados dentro de colchetes, para deixar claro que essa numeração não existiu no original nem na republicação em 1803.

Quanto à grafia, é fácil perceber que o "v" foi substituído por "u", bem como outras variações, que dão mais sabor ao texto. Uma palavra talvez valha a pena ressaltar: "defender" tem o sentido de "proibir".

Comecemos então com o objeto da ordenação: garantir que o investimento feito por Portugal na busca de um caminho marítimo para as Índias, empreitada custosa e demorada, resulte em resultados econômicos para o Reino (monarca?), pela imposição de um estanco (monopólio) relativo sobre esse comércio.

Assim o primeiro parágrafo declara que esse é o objetivo, garantir o retorno do custoso investimento, impedindo a intromissão de outros nesse comércio. E os parágrafos seguintes (2 a 4) esclarecem que existe um monopólio, exercido diretamente pela Coroa, indiretamente por mercadores autorizados, mas nunca pelos servidores contratados para servirem nesses locais.
Ordenações da India do Senhor Rei D. Manoel
[01] Dom Manuel por graça de Deos rei de Portugal, e dos Algarues, daquem, e dalém mar em Africa, senhor de Guinee, e da conquista, nauegação, e comercio de Ethiopia, Arabia, Persia, e da India, etc. Fazemos saber a quantos este nosso regimento, e ordenações virem, que consirando nós como ho comercio, e trauto das Indias foi tão caro, e tão custoso de auer, e com tanto risco, e periguo de gente, e por tanto descurso de tempo, no qual algumas pessoas se antremetem, de modo que ligeiramente se poderia em muyta parte danificar, auendo hi tanta razão pera ser muy conseruado, assi pelo muito seruiço de Deos, no acrecentamento da nossa Santa Fee Catolica, que se delle seguio, e segue, e esperamos que se sigua, como ysso mesmo por resultar, e se trautar de grande proueito comum, e muy vniuersal a todos nossos reynos, e senhorios, e assi pelo que cumpre a nosso particular seruiço: e querendo dar fórma, e maneira, que ho dito trauto, e comercio, aja de andar na ordem que deue, e pera ser conseruado, fezemos as ordenações, e regimento seguinte.

[02] Item defendemos, e mandamos, que ninhum nosso feitor, de ninhuma nossa feitoria da India, nem de Malaca, nem Dormuz, nem de ninhuma outra parte, em que feitoria teuermos: posto que fóra da India seja, nem os escriuães das ditas feitorias, nem ninhum outro official de nossa fazenda, que tenhamos nos luguares das ditas nossas feitorias, por si, nem por outrem, nem em ninhuma companhia de mercadores christãos, nem mouros, nem de qualquer outra nação, nom possão trautar em ninhuma sorte de especiarias, droguarias, nem ninhuma outra mercadoria de lãa, nem nas de caa do reyno, nem as comprar, nem vender, posto que tenhamos dado luguar aaquelles, que nos andão seruindo nas ditas partes da India, que ho possão fazer naquellas cousas, pera que lhe temos dado licença, porque hos sobreditos nossos officiaes, nom queremos que aja luguar a dita liberdade, nem se entenda: sob pena que sendo prouado a qualquer dos sobreditos, que trautou, comprou, ou vendeo, algũa mercadoria, assi de lãa da terra, como de caa do reyno, perder pelo mesmo feito, todo ho que se lhe provar, que assi trautou, comprou, e vendeo, e mays seu soldo, e qnintaladas se de nós has tever, e toda sua fazenda; assi movel, como de rayz, onde quer que lhe fôr achada.

[03] E assi mesmo defendemos, e mandamos que hos sobreditos feitores, e escriuães de nossas feitorias, nem ninhuns outros nossos officiaes de nossa fazenda nos luguares, onde as tevermos, nom trautem em comprar, ou vender ninhuns mantimentos nos luguares, onde forem nossos officiaes, nem de fóra hos mandem viir, pera nelles hos venderem: sob pena que sendo-lhe prouado que ho fezerão, encorrão nas penas sobreditas de perdimento de suas fazendas, como acima he decrarado.

[04] Item defendemos, e mandamos aos ditos nossos feitores, almoxarifes, e outros officiaes que receberem, ou despenderem nossa fazenda nas ditas partes, e escriuães das ditas feitorias, e dos outros nossos officiaes sobreditos, que nom tomem, nem comprem, nem recebão por via de emprestimo, pera sobre elles ficar carreguado em recepta, como fazenda nossa, e ha auerem depois de paguar, de ninhuũ nosso capitam de fortaleza, nem de náo, ou nauio, nem de ninhũa outra pessoa, que em nome de cada huũ delles ditos capitães, ou por elles o faça, ninhũas mercadorias, nem mantimentos, nem ninhũas cousas que possão ser necessarias pera nossos almazães, assi pera corregimento e aparelhos de nossas náos navios, como todas e quaesquer outras, de qualquer sorte e qualidade que sejão, sob pena de sendo-lhe prouado, que o fezerão, pola dita maneira em qualquer das sobreditas cousas, em que se lhe prouar, percão todas suas fazendas, e enccorrão nas penas sobreditas, a além disso percão seus officios, e mays sejão degradados pera a ylha de Santomé por quatro anos, ho capitam, ou pessoa outra por elle, que lhe as taes mercadorias e cousas sobreditas der, vender ou emprestar, e a que for prouado, encorra em pena de perder todo seu ordenado da capitania, e nom sendo capitão, todo ho ordenado que de nós teuer, de todo ho tempo que nos teuer seruido, e nom ho vencerá de hi por diante mays.

[05] E defendemos assi mesmo, e mandamos aos sobreditos nossos feytores, escrivães, e officiaes sobreditos, que nom dem ninhũa mercadoria nossa de qualquer sorte que seja, nem delle dito feitor, nem de ninhũa outra pessoa, ainda que por nossa licença a possão levar, em pagamento de soldo, nem doutra obrigação que em nossas feitorias, e nos outros carreguos que de nós teuerem, se aja de paguar sob as ditas penas acima decraradas, em que queremos que encorrão, sendo-lhe prouado que ho fezerão.

[06] Item defendemos ysso mesmo, e mandamos aos ditos nossos feytores, e officiaes sobreditos, que nom paguem soldo algũ, saluo aas mesmas partes a que fór deuida, e nom por procurações nem por outro modo algum que seja; e que quando assi aas mesmas partes ho paguarem, além das paguas, que na adição de cada hum até agora se costumou poer nos liuros; cobrem conhecimentos das mesmas partes, como ho recebem, feitos pelos escrivães de seus carreguos, e asinados por elles, e pelas mesmas partes, em que decrarem ho tempo de que são paguos, e ho soldo que tinhão, sob pena, que se ho contrairo fezerem, lhe nom seja leuado em conta, ho que fora desta ordenãça paguarem, e mays o paguem anoveado, e percão seus officios, sem mays hos seruirem. Os quaes conhecimentos serão feitos em hum liuro emcuadernado, que para ysso se fará.

[07] Item defendemos ysso mesmo, e mandamos, que os ditos nossos feytores, e officiaes sobreditos, que receberem, ou despenderem nossa fazenda nas ditas partes, por ninhuũ embarguo que lhe seja feito em soldo dalgũa pessoa, nom deixem de paguar aa propria pessoa, a que ho soldo for deuido, saluo quando lhe for embarguado com sentença, que a parte contraira tenha, e com mandado com ella do ouuidor da India, ou do nosso capitam moor, pelo qual mando, que pela dita sentença seja paguo pelo tal soldo: sob pena, que se ho contrairo fezer, ho pague anoueado.
... a continuar ...
Note-se o cuidado com a clareza e precisão da norma, que cuida de separar completamente o trato do comércio, reservado ao Rei, e o pagamento dos servidores, que deve ser exato, e totalmente desvinculado dos objetos do comércio.

Fontes:
CAMINHA, Antonio Lourenço. Ordenações da India do Senhor Rei D. Manoel. Lisboa: Impressão Régia, 1807.

Veja também:
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