quarta-feira, 28 de março de 2012

Mercadorias Portuguesas Apresadas pelos Britânicos - V

Paulo Werneck

O Correio Brasiliense prosseguiu na análise do assunto da devolução das propriedades portuguesas apresadas pelos ingleses na edição de outubro de 1808, número 5. Veja aqui o início da história.

Na postagem anterior foi mostrada a decisão de 21 de setembro, em inglês, conforme publicada na The London Gazette, citada pelo Correio. Em outubro ela foi traduzida:
Na Corte, Palácio da Raynha, 21 de Septembro, de 1808.

PRESENTE a Excellentissima Magestade d'El Rey, em Conselho. Porquanto foi S. M. servido, pela sua Ordem em Conselho de 6 de Janeiro, e de 4 de Mayo próximo passado, ordenar que se tomassem certas medidas, para o Cuidado, e Guarda da Propriedade Portugueza, pertencente a pessoas residentes em Portugal, ou em outra qualquer parte, debaixo da influencia da França: e a qual havia sido detida por Corsarios Inglezes; e sugeitar a tal propriedade á futura disposiçaõ do Principe Regente de Portugal, em consideraçaõ de naõ se acharem os donos com direito á posse della, em quanto ficavam debaixo da influencia do.inimigo.

E por quanto a Libertaçaõ de Portugal de tal influencia se effectuou depois, e os habitantes daquelle Paiz tornaram a ficar devidamente habilitados para receber a restituiçaõ da sua propriedade.

He S. M. servido, em conseqüência disto, por e com o parecer do seu Conselho Privado, ordenar, e fica por esta ordenado, que toda a Propriedade Portugueza será immediatamente restituida aos seus respectivos Donos, ou seus legítimos Agentes; e as pessoas nomeadas, em virtude da Ordem em Conselho de 6 de Janeiro, para o cuidado, e administraçaõ da propriedade Portugueza saõ por ésta ordenados a que restituam a mesma, nesta conformidade. Esta propriedade, com tudo, ficará sugeita ao pagamento das custas, e das despezas, que justamente se tiverem feito a seu respeito. E todas as questoens, relativas ao senhorio de tal propriedade, quando as pessoas sobredictas tiverem alguma duvida, relativamente ao dicto e custas, ou despezas da mesma, seraõ decididas summariamente pela Alta Corte do Almirantado, ou Corte do Vice Almirantado, a que tal propriedade tiver sido trazida para ser adjudicada. E os muito Honrados Lords Commissarios do Thesouro de S. M. os Lords Commissarios do Almirantado, e o Juiz da Alta Corte do Almirantado, e os Juizes das Altas Cortes de Vice Almirantado, tomem as medidas necessárias, para este fim, segundo o que a elles respectivamente pertencer.

W. FAWKENER.
Imediatamente a seguir, o editor teceu suas considerações:
Pelo Documento acima (p. 378.) transcripto, verá o leitor, que as propriedades Portuguezas foram mandadas entregar aos seus respectivos donos, ou legítimos agentes, sem restricçaõ alguma. Os Ministros Inglezes mui sabiamente deixaram de contemplar, nesta Ordem, o Ministro Portuguez, em Londres; e se eu me pudesse persuadir, de que aos meus fracos esforços tinham contribuído para fazer conhecer o facto, de quam desagradável éra a todos os Portuguezes o systema, que neste negocio seguio o Ministro de S. A., certamente me julgaria mui feliz, de haver contribuído para remover-se mais aquelle empecilho; como quer que seja, o Ministério Britânico obrou de maneira, que agradou a todos os homens imparciaes: e se pór um acto de justiça se adquire direito ao agradecimento, os Portuguezes o devem agora, por isto, ao Governo Inglez: eu dou os parabéns disso aos proprietários; e naõ obstante que os Agentes Depositários ponham ainda algumas fracas duvidas á entrega, com tudo, como delles pode haver recurso para um tribunal de justiça, até ao ponto de os fazer responsáveis por suas pessoas e bens, pelas percas que voluntariamente causarem aos proprietários, tudo terá ainda remédio, tal qual he possível dar-lhe, na presente situaçaõ das cousas; quando por outra parte, as duvidas e entraves, que o Ministro Portuguez custumava pôr, e poria agora, se fosse ouvido na entrega dessas propriedades, naõ tinham nenhum remédio, porque elle naõ está sugeito ás leis do paiz ou jurisdicçaõ de magistrado algum:—as vantagens pois desta ultima Ordem em Conselho saõ evidentes.
Certamente o editor do Correio, presente aos acontecimentos, podia ter uma avaliação mais próxima das qualidades, ou da falta dessas mesmas qualidades, de Souza Coutinho, o embaixador português em Londres, que acusou de descaso pelos prejuízos havido pelos conterrâneos negociantes.

Entretanto é nítido que a mesma energia crítica não foi utilizada contra as autoridades inglezas, que apresaram navios "protegidos" por elas. Não podiam sequer imaginar uma possibilidade de desvio, eis que os vasos de guerra britânicos estavam acompanhando o comboio português com destino ao Brasil, levando o Príncipe Regente para o Rio de Janeiro, para onde transladaria a sede do império Português.

Em 21 de setembro de 1808, dez meses depois, mandarem devolver sem mais tergiversações as mercadorias estupidamente apreendidas em novembro de 1807, sem indenização pelos lucros cessantes e pela desvalorização das mercadorias sujeitas a deterioração, ao contrário cobrando despesas de conservação e taxas para os comissários, foi decisão tardia e injusta da Grã-Bretanha, que não merecia quaisquer encômios.

Pela maneira como se expressou o editor, a culpa era das vítimas, por não saberem se defender dos ataques, ou melhor, do embaixador que não teve força ou ânimo para o fazer.

Outro ponto interessante é a imagem altamente positiva que se faz o editor do Correio, ao imaginar que suas críticas e notícias, num jornal mensal, escrito em língua estrangeira (para os britânicos), recém lançado - nesse momento estava no quinto número, enquanto a The London Gazette, tantas vezes utilizada como fonte, embora nunca citada, começou a ser publicada em 1665, ou seja, já tinha quase cento e cinquenta anos de idade. Um pouco de humildade não lhe teria feito mal...

A continuar em Mercadorias Portuguesas Apresadas pelos Britânicos - VI.

Fontes:
Correio Braziliense, nº 5, outubro de 1808. Disponível em Brasiliana USP (www.brasiliana.usp.br)
The London Gazette, nº 16.186. Disponível em www.london-gazette.co.uk.