quinta-feira, 13 de março de 2008

Proibição das Manufaturas - 1785

Paulo Werneck

Alvará de 5 de janeiro de 1785, de Maria I, que extingue as manufaturas de tecido no Brasil.



EU A RAINHA Faço saber aos que este Alvará virem: que sendo-me presente o grande número de Fabricas, e Manufacturas, que de alguns annos a esta parte se tem diffundido em differentes Capitanías do Brazil, com grave prejuizo da Cultura, e da Lavoura, e da exploração das Terras Mineraes daquelle vasto Continente; porque havendo nelle huma grande, e conhecida falta de População, he evidente, que quanto mais se multiplicar o número dos Fabricantes, mais diminuirá o dos Cultivadores; e menos Braços haverá, que se possão empregar no descubrimento, e rompimento de huma grande parte daquelles extensos Dominios, que ainda se acha inculta, e desconhecida: Nem as Sesmarias, que formão outra consideravel parte dos mesmos Dominios, poderão prosperar, nem florecer, por falta do benefício da Cultura, não obstante ser esta a essencialissima Condição, com que forão dadas aos Proprietarios dellas. E até nas mesmas Terras Mineraes ficará cessando de todo, como já tem consideravelmente diminuído a extracção de Ouro, e Diamantes, tudo procedido da falta de Braços, que devendo empregar-se nestes uteis, e vantajosos trabalhos, ao contrario os deixão, e abandonão, occupando se em outros totalmente differentes, como são as referidas Fabricas, e Manufacturas: E consistindo a verdadeira, e sólida riqueza nos Frutos, e Producções da Terra, as quaes sómente se conseguem por meio de Colonos, e Cultivadores, e não de Artistas, e Fabricantes: e sendo além disto as Producções do Brazil as que fazem todo o fundo, e base, não só das Permutações Mercantis, mas da Navegação, e do Commercio entre os Meus Leaes Vassalos Habitantes destes Reinos, e daquelles Dominios, que devo animar, e sustentar em commum beneficio de uns, e outros, removendo na sua origem os obstaculos, que lhe são prejudiciaes, e nocivos: Em consideração de tudo o referido: Hei por bem Ordenar, que todas as Fabricas, Manufacturas, ou Teares de Galões, de Tecidos, ou de Bordados de Ouro, e Prata: De Velludos, Brilhantes, Setins, Tafetás, ou de qualquer qualidade de Seda: De Belbutes, Chitas, Bombazinas, Fustões, ou de outra qualquer qualidade de Fazenda de Algodão, ou de Linho, branca, ou de cores: E de Pannos, Baetas, Droguetes, Saetas, ou de outra qualquer qualidade de Tecidos de Lã, ou os ditos Tecidos sejão fabricados de hum só dos referidos Generos, ou misturados, e tecidos huns com os outros; exceptuando tão sómente aquelles dos ditos Teares, e Manufacturas, em que se técem, ou manufacturão Fazendas grossas de Algodão, que servem para o uso, e vestuario dos Negros, para enfardar, e empacotar Fazendas, e para outros Ministérios semelhantes; todas as mais sejão extinctas, e abolidas em qualquer parte onde se acharem nos Meus Dominios do Brazil, debaixo da Pena de perdimento, em tresdobro, do valor de cada huma das ditas Manufacturas, ou Teares, e das Fazendas, que nellas, ou nelles houver, e que se acharem existentes, dous mezes depois da publicação deste; repartindo-se a dita Condemnação metade a favor do Denunciante, se o houver, e outra metade pelos Officiaes, que fizerem a Diligência; e não havendo Denunciante, tudo pertencerá aos mesmos Officiaes.

Pelo que: Mando ao Presidente, e Conselheiros do Conselho Ultramarino; Presidente do Meu Real Erario; Vice-Rei do Estado do Brazil; Governadores, e Capitães Generaes, e mais Governadores, e Officiaes Militares do mesmo Estado; Ministros das Relações do Rio de Janeiro, e Bahia; Ouvidores, Provedores, e outros Ministros, Officiaes de Justiça, e Fazenda, e mais Pessoas do referido Estado, cumprão, e guardem, e fação inteiramente cumprir, e guardar este Meu Alvará como nelle se contém, sem embargo de quaesquer Leis, ou Disposições em contrario, as quaes Hei por derogadas, para este effeito sómente, ficando aliás sempre em seu vigor. Dado no Palacio de Nossa Senhora da Ajuda, em 5 Janeiro de 1785. = Com a Assignatura da Rainha, e a do Ministro.

Regist. a fol. 59 do Livro, dos Alvarás na Secretaria de Estado dos Negocios da Marinha, e Dominios Ultramarinos, e Impr. na Offiina de Antonio Rodrigues Galhardo.

Comentários

A proibição de manufaturas de tecidos no Brasil não foi imotivada: Maria I (1734-1816), Rainha de Portugal a partir de 1777, a justificou pela falta de braços na colônia brasileira, necessários à lavoura, à mineração e mesmo ao desbravamento do território, braços esses que não deveriam ser desperdiçados na produção de tecidos.

Talvez a rainha fosse leitora de A Riqueza das Nações, de Adam Smith (1723-1790, economista escocês, que desenvolveu a Teoria das Vantagens Absolutas, pela qual cada nação deveria se especializar naquilo que produzisse melhor, como os particulares já o faziam:
"Todo pai de família prudente tem como princípio jamais tentar fazer em casa aquilo que custa mais fabricar do que comprar. O alfaiate não tenta fazer os próprios sapatos, mas compra-os do sapateiro. ... Todos eles consideram de seu interesse empregar toda sua atividade de forma que aufiram alguma vantagem sobre seus vizinhos, comprando com uma parcela de sua produção - ou, o que é a mesma coisa, com o preço de uma parcela dela - tudo o mais de que tiverem necessidade."
É verdade que Smith defendia o contrário, a liberdade do comércio, não a proibição artificial de instalação de manufaturas.

A motivação real da proibição, no entanto, seria tentar garantir o desenvolvimento da indústria têxtil da metrópole, criando um mercado para o escoamento da sua produção, no caso, o da colônia americana.

Não fosse por isso, qual seria a razão de não considerar desperdício a utilização dos escassos braços na produção de "Fazendas grossas de Algodão, que servem para o uso, e vestuario dos Negros, para enfardar, e empacotar Fazendas, e para outros Ministérios semelhantes"?

Glossário (cf. Houaiss)

baeta: tecido de lã ou algodão, felpudo de ambos os lados; belbute: tecido grosso e pesado de algodão, semelhante ao veludo; bombazina: um tipo de seda ou tecido de algodão que imita o veludo cotelê; brilhante: tecido de seda muito lustroso; droguete: tecido de lã, algodão ou seda, de má qualidade e baixo preço; fazenda: conjunto de gêneros ou produtos destinados à venda, mercadoria; galão: tira de tecido bordado de fios de ouro, prata, seda, algodão, etc.; ministério: atividade, trabalho, mister; saeta: tecido leve de lã usado para forros; setim: cetim; tresdobro: três vezes maior.

Veja também

Reabertura das Manufaturas - 1808
Destruição dos Teares

Referências

PORTUGAL. Alvará de cinco de janeiro de 1785. Alvará prohibindo as Fábricas, e Manufacturas, no Brazil. In: SILVA, Antonio Delgado da [redator]. Collecção da Legislação Portugueza Desde a Ultima compilação das ordenações, legislação de 1775 a 1790. Lisboa: Typografia Maigrense, 1828. Disponível em http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=109&id_obra=73&pagina=565. Acesso em: 22 fev. 2008.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações, Livro IV, cap. II [v. 1, p. 380]. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

3 comentários:

Aníbal Bragança disse...

Prezado Paulo,
parabéns pela iniciativa de divulgar documentos importantes de nossa História. E mais que isso, fazê-lo de forma adequada, correta, com reprodução de imagens e indicação de fontes.
Muito útil a pesquisadores, entre os quais me incluo, e a professores em geral.
Cordialmente,
Aníbal Bragança

Unknown disse...

Também adorei este artículo. Forte! Incrível como a monarquia controlava todo e qualquer sector do reino. Informação muito importante sobre o algodão, que se transforma em trapo e depois em papel.. óptima fonte, Paulo. Obrigada!

Paulo Werneck disse...

Prezados Aníbal e Ana,

Chega a ser ridículo responder anos ou meses depois, mas antes tarde do que nunca. Isto posto, muito agradecido pelos amáveis comentários.